


De Afrodite às redes sociais: Como a pressão estética cria raízes e barreiras na vida das mulheres

Padrão social que atravessa deusas gregas, influenciadoras digitais e anônimas se move com a história dos dilemas femininos
O que tempo, espaço e beleza têm em comum? Quase sempre questões relativas para a vida humana, esses três elementos formam uma conexão única quando pensamos no que pode ser considerado “bonito”. Por lógica, no imaginário popular, todo mundo precisa de horas livres para estar em lugares que vendam beleza, ou para buscar práticas que os façam se sentir belos, de preferência no sentido físico.
Essa noção pode passar despercebida porque, em algum momento, virou nossa rotina. E nada cria raízes sem ter uma história para contar. Até mesmo nos dicionários, o conceito de “beleza” não é uma unanimidade - características, essências e propriedades estão entre os muitos critérios usados na definição do substantivo feminino. No entanto, desde a época de Afrodite, nascem e se estabelecem referências que contemplam apenas fragmentos de toda essa dimensão.
A própria deusa grega representou por si só um dos primeiros padrões de beleza do planeta, simbolizando ainda a fertilidade e sexualidade. Ao longo dos séculos, outros modelos de contemplação estética ganharam espaço e, assim, reuniram elementos que conversavam com suas respectivas sociedades e contextos históricos.
Na Idade Moderna, por exemplo, peles mais pálidas e corpos vultosos eram traços ligados a mulheres de classes ricas que, justamente por seu poderio, figuravam como o arquétipo a ser seguido. Já a Era Industrial foi marcada por transformações sociais que também atingiram os ideais de beleza e, posteriormente, abriram brechas para a chegada de maquiagens e demais produtos estéticos aos mercados durante o século XX.
A tendência dos cosméticos seguiu firme até a década de 1990, período em que as supermodelos dominaram as capas de revista, e reproduziram um senso de beleza ditado pelas altas estaturas e pelo culto à magreza extrema. Naomi Campbell, Kate Moss, Cindy Crawford, Tyra Banks e Claudia Schiffer, alguns dos nomes de maior destaque em frente às câmeras, receberam, inclusive, o título de “ícones da moda”.
Simulação da construção da beleza no Brasil em 100 anos
(Vídeo: Cut/YouTube)
Transformação dos ideais corporais femininos ao longo da história (Vídeo: BuzzFeed/YouTube)

O mesmo apelo estético se desdobrou durante os anos 2000 - cores vibrantes e jeans eram detalhes frequentes em roupas estilizadas e rentes ao corpo, o qual ganhou um papel bem mais central na determinação do valor das mulheres no meio social. Diariamente, celebridades (igualmente vítimas) tinham seus visuais modificados em editores de imagem e personificavam manchetes que carregavam um propósito bem claro: o ideal de beleza é inatingível, mas a culpa ainda é sua se não conseguir alcançá-lo.
No Brasil, Sandy, Deborah Secco e Samara Felippo fizeram parte da estatística ao estamparem edições da revista Capricho ao lado de frases como “O que os meninos amam e odeiam no nosso visual”, “A feiticeira ensina como endurecer o bumbum, as pernas e a barriga” e “Boa de corpo”, respectivamente.
Considerando a influência de outras produções midiáticas da época, como Atrevida e Boa Forma, os profissionais de educação física Brianna Silva, Cristiano Mezzaroba e Flávio Zoboli classificam a criação da editora Abril como uma espécie de “pedagogia para o padrão estético de beleza”. Ou seja, em suas extintas publicações físicas, a Capricho sustentava um foco exacerbado no ensino de comportamentos que supostamente cuidariam do corpo feminino, mesmo que estes conteúdos reforçassem ideais irrealistas.
“A revista ganhava o lugar de ‘conselheira’ e ‘melhor amiga’ da mulher, era aquela que sempre tinha uma solução para os problemas, que sempre tinha uma palavra de estímulo. Assim, estando acessível a muitas mulheres, as práticas de embelezamento adquiriam um caráter de dever, o qual não era propriamente ‘imposto’, mas sim sugerido incessantemente”, analisam, no artigo “A Influência da Revista Capricho na Construção de um Senso Estético entre as Jovens”.

Onde aprendemos que a beleza dói?
No passado ou no presente, viver em desacordo com os “conselhos” e modelos predominantes na grande mídia se torna uma das facetas mais cruéis da juventude. Principalmente, porque essas questões não estão ligadas somente a corpos e rostos, mas a etnias, cores de pele e orientações sexuais. Nesse contexto, não se enquadrar no padrão de beleza significa não ser plenamente reconhecida como pessoa.
Essa dor individualizada se expande na experiência coletiva da pressão estética, movimento definido pela busca incessante por se encaixar nos ideais de beleza, ao mesmo tempo em que há um constrangimento social para tal procura. As maiores afetadas no sistema são mulheres não brancas, acima dos 40 anos, não magras e integrantes da comunidade LGBTQIA+.
A psicóloga e pesquisadora feminista, Bianca Mayumi, explica que, para reconhecer o que entendemos como beleza, é preciso falar da hierarquização do padrão, que molda suas referências valorizando primordialmente traços europeus, como cabelos loiros, olhos claros e narizes pequenos.
“Com o passar do tempo, também vamos desenvolvendo novas tecnologias de gênero. Eu não estou falando só sobre redes sociais e internet, mas sobre comentários, brinquedos…a própria Barbie, a gente está aí, né? A explosão de volta com o novo filme. Então, são várias formas de tecnologia de gênero, várias formas de impactar e dar significado para o que é ser mulher e ser homem no meio da nossa socialização”, analisa.
Apesar do nivelamento feminino socialmente construído, a psicóloga cita “A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações”, de Valeska Zanello, ao destacar que a coerção estética ultrapassa os critérios que colocam certas mulheres na frente e outras, atrás da prateleira.
“A grande pegadinha é que todo mundo sai impactado por isso [padrão de beleza], porque até as mulheres com maior nível de privilégio hoje, um dia envelhecem. Então, até elas que são colocadas na frente dessa prateleira, uma hora vão cair. Ela é muito mutável, a gente não sai ganhando. A gente, de novo, é um objeto, né? Não tem como a gente sair ganhando nisso”, esclarece.
Segundo o levantamento “Beleza, Saúde e Bem-estar” (2022), da Opinion Box, 54% das brasileiras afirmam que sua aparência física está relacionada ou muito relacionada com sua felicidade, enquanto 15% também consideram ter baixa autoestima. Quando o assunto é o padrão de beleza atual, 27% das mulheres do país se vêem mais distantes dele. O mesmo índice cai para 18% entre os homens.
Como enfatiza Mayumi, a proporção que a pressão estética pode assumir na mente feminina tem raízes culturais. “Fomos ensinadas desde crianças a sermos escolhidas por alguém, sermos objetos de desejo, de prazer, de agrado. E, para isso, um dos pontos centrais é a beleza”, descreve.
Além do reflexo nos laços afetivos e amorosos, por associação, o padrão consegue força para impactar as visões de carreira, sucesso e bem-estar das mulheres. “Uma coisa está atrelada a outra. Você só vai conseguir seu objetivo quando você tiver alcançado tantos outros pré-requisitos. E aí, inclui a beleza”.
A exposição aos mecanismos e divulgações da pressão estética também pode causar impactos psicológicos. “A nossa autoestima é fluída, realmente flexível e impactada pelo mundo. Há questões, como uma distorção de imagem tão grande, que podem levar a uma depressão, ansiedade e tantos outros transtornos que, enfim, têm seus desencadeamentos”, expõe Mayumi.
Para ela, as mulheres são encorajadas a escolher uma forma extrema de reagir a esses contextos, seja pelo medo de expressar vulnerabilidade, ou pela exigência social de se mostrarem empoderadas e fortes. Uma resposta saudável às imposições irreais seria a criação de uma rede feminina de convívio e apoio.
“A gente entra num processo de validade, de esconder, de não poder trocar, falar das nossas inseguranças ou contar os nossos segredos de como se cuidar. E a verdade é que acho que a nossa união é o que pode fazer uma grande mudança nesse espaço, porque, nela, a gente pode falar ‘Puts, eu não estou sozinha’”, afirma.


Como encorpamos os padrões
A imposição de padrões alimenta o crescimento do mercado de cosméticos e da busca por procedimentos estéticos – invasivos ou não. E, ainda que existam estereótipos de beleza para homens e mulheres,o alvo é, historicamente, o público feminino. Na lógica de mercado, a beleza também é vendida como sinônimo de sucesso e felicidade, no entanto, essa beleza depende de sacrifícios, tanto financeiros, quanto psicológicos.
Segundo pesquisa da International Society of Aesthetic Plastic Surgery, divulgada em dezembro de 2020, o Brasil se tornou, em 2019 e pelo segundo ano consecutivo, o país que mais realizou cirurgias plásticas no mundo. Mas como a cultura da beleza auxilia no aumento da busca por intervenções plásticas não só em terras tupiniquins, mas ao redor de todo o globo?
As cirurgias plásticas vêm ganhando notoriedade desde o século passado. O que inicialmente objetivava a reconstrução de características físicas e fisiológicas como forma de contribuir para melhor qualidade de vida do indivíduo, hoje passa a ter uma preocupação puramente estética muito maior.
Devido à finalidade primária da cirurgia plástica reconstrutiva, a sociedade e os próprios cirurgiões não reconheciam essa prática cirurgia para fins estéticos. Mas, com a crescente preocupação com a aparência física, ligada ao discurso de autoestima, a partir da segunda metade do século XX a visão começou a mudar, possibilitando maior aceitação da cirurgia plástica estética.
As publicidades e o potencial de alcance das mídias sociais - combinados com as já conhecidas pressões estéticas - influenciam diretamente no aumento da demanda de intervenções cirúrgicas, especialmente focadas no público feminino. Os ideais de beleza são, assim, cada vez mais difundidos e propagados pelas mais diversas plataformas.
A mídia também tem um papel central nesse sentido: age de forma a incentivar a busca por plásticas, contribuindo para manutenção da insatisfação corporal como fonte geradora de consumo. De acordo com levantamento da Opinion Box (2022), 81% dos brasileiros já realizaram algum tipo de procedimento estético, sendo que 31% dessas intervenções aconteceram quando essas pessoas tinham entre 18 e 24 anos.
Inegavelmente, os usuários são, todos os dias, bombardeados com centenas de milhares de conteúdos e propagandas, que vão desde rotinas de skincare até vlogs com experiências e dicas sobre cirurgias plásticas estéticas. Todo esse cenário resulta na supervalorização da aparência física - terreno fértil para a expansão das intervenções plásticas.
Atualmente, há uma crescente naturalização da busca por tais intervenções, já que, na maioria das vezes, o corpo da mulher não se encaixa naturalmente nos padrões evocados em sociedade. Dentre as cirurgias mais procuradas estão:
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Lipoaspiração (que vai ao encontro do desejo de menor porcentagem de gordura, citando aqui o culto à magreza);
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Aumento das mamas (como justificativa da busca por seios grandes e firmes);
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Blefaroplastia (que retira o excesso de pele das pálpebras com a intenção de rejuvenescer o rosto e explicita cultura do louvor à juventude);
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Rinoplastia (fazendo referência à valorização de traços finos).
Ademais, como um procedimento que até o ano de 2019 era pouco procurado, o aumento dos glúteos aparece agora entre os procedimentos mais realizados - realidade que pode demonstrar a influência de novas preocupações estéticas.
Mas, afinal, por que a busca expressiva pelas mudanças corporais? A beleza é um assunto universal, embora seja um conceito subjetivo. O corpo é entendido como um item de exibição, o qual deve ser moldado, manipulado, trabalhado, construído e produzido. A partir da instituição do que é considerado belo é que o próprio corpo entra e sai da moda. Entre os motivos mais comuns pelos quais os indivíduos recorrem à cirurgia estética estão a baixa autoestima, insatisfação, sensibilidade afetiva, anseio pela melhora da imagem física, peso corporal, influência da mídia e condições financeiras.
Em suma, a busca pelo corpo dito “perfeito” está, muitas vezes, diretamente relacionada a subjetividades, tanto aquelas pertencentes ao próprio ser, quanto aquelas advindas do convívio social. Nesse sentido, a apologia ao corpo esteticamente belo e proporcionalmente magro é uma das mais severas fontes de frustração e angústia para as mulheres.
Na atualidade, as singularidades dos corpos estão sendo tão desvalorizadas que se cria uma dualidade: ao mesmo tempo que há a promoção do corpo como item glorificado, ele também é facilmente desprezado quando não está nas conformidades aceitas pelo senso comum.
É dentro dessa realidade que nasce a promessa de resgate da autoestima, a partir do encorajamento para a realização de procedimentos estéticos, muitas vezes sem considerar os riscos que uma cirurgia acarreta ou as particularidades de cada indivíduo. Fatores que são marginalizados dentro da lógica da glamourização das cirurgias plásticas, mas que são considerações primárias a se fazer quando se pensa em realizar uma intervenção esbarram na consciência de possíveis complicações, no estudo das qualificações do médico escolhido para o procedimento, no tempo de recuperação, mas, principalmente, nas motivações que levaram a decidir pela realização da cirurgia.
Em contraposição a essa cultura, ascende o que se conhece por “body positive”. A ideia por trás do movimento social é justamente fazer frente aos padrões estéticos que oprimem as mulheres, focando na aceitação de todos os corpos, independentemente de tamanho, forma, tom de pele, gênero e habilidades físicas.
Embrace é um documentário lançado em 2016, narra a trajetória da ativista australiana Taryn Brumfitt, que lidera uma cruzada para acabar com o constrangimento que as mulheres são levadas a sentir sobre seus corpos e propõe a criação de uma nova forma de percepção corporal.

Embrace convida o público a refletir sobre as imposições de beleza corporal
(Vídeo: Cut/YouTube)
Da beleza para a moda
O que vem em sua mente quando ouve a palavra “moda”? Segundo o dicionário, esse termo refere-se a
1. conjunto de opiniões, gostos, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos
2. uso de novos tecidos, cores, matérias-primas etc. sugeridos para a indumentária humana por costureiros e figurinistas de renome.
Dentro do universo de Afrodite, esse conceito se une aos padrões de beleza para consolidar o ideal de aparência perfeita.
Engana-se quem pensa que a moda é apenas um produto mercadológico. Ela tende a refletir os comportamentos de uma sociedade. Mas hoje, ela vai além disso, sendo, acima de tudo, uma indústria preocupada com a produção e venda de grandes quantidades de produtos têxteis.
Para isso, antes de vender roupas, ela precisa vender desejos. Desfiles, campanhas e mídias sociais são utilizadas para isso. Assim como para os padrões estéticos, os produtos dessa indústria são vendidos e desejados pois são atrelados à felicidade e sucesso.
É justamente a partir dessa produção de desejo que se cria uma relação de dependência de consumo com o público. Desta forma, a moda convence o público a comprar novas peças, ainda que muitas vezes sem necessidade: para nos tornarmos algo que não somos e dificilmente poderemos ser.
Da mesma forma que concepções de beleza são cíclicas e influenciadas pelas sociedades nas quais os indivíduos se inserem, a moda também passa por fases. Seja com clássicos espartilhos para afinar a cintura ou com as calças jeans de cintura baixa para glamourizar a magreza, as peças procuram atender expectativas muitas vezes irreais. E é justamente sob esse aspecto que a indústria da moda se atrela à da beleza.
Quando se fala de padrão de beleza, pautas como tamanho e peso não devem ser as únicas abordadas. Outras minorias também devem ser representadas, como as mulheres trans, negras e PCDS. Discutir a questão da representatividade no meio da beleza e da moda é tão necessário quanto dar voz a essas pessoas. Um exemplo de produção que vai ao encontro dessa ideia é o reality show Born to Fashion. Lançado em 2020, provoca o diálogo entre moda e identidade, chamando atenção para a luta das mulheres em busca de um lugar no mercado da moda.
Para a criadora de conteúdo digital Beatrice Rocha, a moda influencia muito no que a sociedade entende por padrão de beleza. Por meio de sua produção de conteúdo, Beatrice traz sua rotina, tratando de pautas como inclusão e beleza do corpo PCD, sendo ainda um grande exemplo de representatividade.
“Na moda bonita, aceitável e tendência existe muito mascarado a ideia de diversidade, a ideia de diferentes corpos. Mas tudo que a gente tem é mais do mesmo, e a gente vê isso nos mínimos detalhes“. Dentro dessa realidade, é como se as pessoas fora do “padrão” não tivessem o direito de ter o próprio estilo, de serem representadas ou de se sentirem bem com a própria imagem. Para a indústria convencional, são as pessoas que devem se adaptar às roupas, e não o contrário.
Carolina dos Santos, influencer que é referência na produção de conteúdos sobre moda e beleza acredita que a representatividade é essencial para que as mulheres entendam que podem ser e ocupar o espaço que quiserem. Dentro de seu público, mulheres negras e/ou com mais de quarenta anos são diariamente incentivadas e inspiradas a acreditarem em si mesmas.
“Então, eu como uma mulher gorda, eu sei os meus desafios para poder falar sobre a beleza de uma forma que as pessoas não me enxerguem somente como uma pessoa gorda, mas sim uma mulher que tem uma beleza e como qualquer outra. Fala-se que a beleza negra não se vende, mas eu acho que é a que mais dá retorno em todos os aspectos, porque é uma beleza única, é uma beleza que tem as suas vantagens, falo por mim sendo uma mulher de quarenta e cinco anos que não aparento ter essa idade e que eu me cuido da melhor forma possível.”
Esses relatos trazem a luz a importância da escuta e do se ver representada de uma forma real. Em uma sociedade midiatizada na qual filtros e intervenções cirúrgicas atuam como mecanismos para naturalizar e solidificar os coercitivos padrões de beleza, ser autoral e ter consciência da beleza que mora em cada diversidade e singularidade é essencial.
Uma alternativa para se conectar mais com essa proposta é consumir conteúdos e seguir personalidades que realmente se comprometam em produzir de acordo com a realidade, incentivando as mulheres a glorificarem seus corpos naturais e os utilizarem de forma e buscar e encontrar felicidade em sua forma mais genuína.
A equipe do “Afrodite não te contou” buscou, por meio dessa reportagem, trazer para você, leitor, um pouco da complexidade e multiplicidade do mundo da beleza e suas interseccionalidades. A partir de pesquisas e conversas com personalidades múltiplas que são influenciadas ou têm influência dentro do universo da beleza, esperamos que as mulheres possam se identificar e compreender que sim, devemos nos orgulhar genuinamente de habitar nossa própria pele!
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